Afluentes do signo
Serei um dia simples
Sereno por excesso
Conciso barroco
Declina o silêncio
Sempre terá sido jamais.
Ronaldo Brito
em Quarta do singular, Duas cidades, São Paulo,1989.
O espaço tem sido, desde os primórdios da arte moderna, um elemento a ser levado em consideração na hora de pensar um projeto expositivo. Exemplos não faltam, como a Exposition Internationale du Surréalisme, na Galerie Beaux-Arts, em Paris , em 1947 e o “Salon de Madame B.à Dresden” de Mondrian. No contexto atual, brasileiro, o Projeto Parede do Museu de Arte Moderna de São Paulo, as janelas da exposição “Beatriz Milhazes: pinturas, colagens”, na Estação Pinacoteca e as mostras recentes de Cildo Meireles e Artur Bairro, entre outros, mostram que esse pensamento já foi consolidado.
Angella Conte, com uma produção literalmente contemporânea, concebe seus trabalhos como instalações. Cada uma de suas obras sustenta-se, do ponto de vista material e formal, a medida em que incorpora o contexto espacial em que se insere. Com uma seleção de obras que levou em conta, sobretudo, a adequação ao espaço expositivo disponível, a exposição “Da nascente à Foz”, no Museu Florestal Octavio Vecchi, resume, como em uma reticula do todo, essa característica da artista.
A configuração estilística e conceitual dos trabalhos de Conte nos dá a dimensão de um minucioso e rigoroso uso de recursos sofisticados que nos levam a uma viagem cuja origem remonta ao início da História da Arte. A artista, transitando por diversos estilos artísticos, explora diferentes suportes. Inicialmente a fotografia e, logo em seguida, a escultura e o vídeo, tendo sempre como base o desenho.
A exposição no térreo do Museu Florestal “Octávio Vecchi” e em um dos lagos do Horto Florestal traz à tona uma das preocupações do idealizador do Museu. Se, no caso dele, a preocupação era com o desmatamento – o que o levou a estudar formas de diminuir os impactos ambientais – na exposição “Da nascente à Foz” o objetivo da artista é apresentar, através das obras mostradas, a preocupação com a conservação das reservas de água do
planeta.
A artista, que tem uma pesquisa sistemática sobre os diversos estágios do espiral cognoscitivo e temporal, usa esses elementos na hora de elaborar seus manifestos (entenda-se obras de arte). Observa-se, em seus trabalhos, uma ressonância discursiva (de discurso e discussão) da relação entre natureza viva e morta, através de uma representação do gênero “natureza morta”, que enfatiza os processos ou intervalos entre os dois estados. Ao colocar dentro de um contexto expográfico, seja de forma bidimensional quanto tridimensional, elementos naturais e outros oriundos do recinto museológico, a artista desloca a discussão para o campo da arte propriamente.
Na obra Silêncio galhos e raízes de árvores ‘invadem’ as grades. Nas fotos, há uma resposta da natureza à ação do homem: uma espécie de protesto silencioso pela própria liberdade, pela vida, representados subjetivamente através de uma das mais discutidas e contemporâneas das linguagens artísticas. Os próprios metais, extraídos da natureza, rebelam-se, como reflexo de uma empreitada desastrosa do homem, que se reverte contra ele mesmo. A obra pode ser vista a partir de qualquer ângulo da sala, num contexto em que os demais trabalhos em exposição dialogam com ela, como a constituir a parte de um todo. Cada peça da obra age como suporte da outra, gerando um processo sem começo nem fim.
Um vídeo do rio de Piracicaba, além de seu significado “presente”, imediato, em si mesmo, estabelece uma conexão da produção recente da artista que ocupa este andar do Museu. A projeção dos caudais do rio desafia o espectador criando um jogo entre a ausência e a presença. Ausência do rio que não está propriamente ali, mas aparece apenas representado através de uma sucessão de imagens. Um rio que hoje existe, mas pode deixar de existir amanhã, convertendo-se em uma dupla metáfora do presente e do futuro. As lâmpadas azuis penduradas do teto, e cujo reflexo aparece nas ‘’charcas” de espelhos no chão da sala, também fazem alusão às sombras e à luz, à lembrança instantânea do corpo, mas desta vez misturada com luz, projeção, alegrias, culpas e desejos.
O lugar e o não-lugar, a presença e a ausência são conceitos a serem avaliados na mostra. A projeção manifesta-se como uma negação da dissolução do passado, como se ele estivesse presente nesse momento.
Concebe-se como uma origem literal, um começo a partir do zero, um nascimento, como a própria nascente do rio, memória que nos remete à imagem em movimento. O filme converte-se numa metáfora organicista referente não tanto a uma invenção formal, mas às fontes da vida. Permite-nos estabelecer uma distinção absoluta entre o presente “quase” experimentado e um passado cheio de lembranças e tradição.
A intervenção no lago tem elementos com o mesmo significado simbólico do registro do rio no vídeo.
Essas semelhanças compõem a visão de um todo e re-significam, metaforicamente, uma discussão contemporânea na arte, a saber, o uso de elementos comuns do nosso cotidiano. Soma-se a isso outra questão, não menos contemporânea, que é a preservação ambiental, no caso específico, a preocupação com o fim das reservas de água do planeta. Por meio dela também evidencia-se uma discussão de fundo sócio-político, pouco vista na produção artística brasileira contemporânea.
Além desta preocupação, também está presente uma relação cromática entre as obras: um jogo entre os elementos “invasores” que as compõem e os elementos do contexto local: árvores, plantas, animais, água e o cubo branco do espaço expositivo moderno. A artista faz com que esses elementos se insiram na discussão conceitual da proposta. Estabelece uma relação figura-fundo na qual os elementos já existentes e os novos se alternam indistintamente, disputando as categorias filosóficas já mencionadas: espaço e tempo.
Há uma compreensão contemporânea do espaço e do tempo a medida em que idéias e objetos, concebidos em tempos e modos diferentes, estabelecem uma relação atemporal no conteúdo e na forma. Estes procedimentos estabelecem a recusa à identificação, classificação e distinção. A rigor, não há limites. Tudo se passa como se a representação da água do rio no vídeo, no térreo, se convertesse em objeto como os sais e minerais, que se misturam na corrente de água e se desfazem de qualquer definição ao serem colocados lado a lado.
As bacias de alumínio, num dos lagos artificiais do Horto Florestal, dão as boas-vindas aos
visitantes. Objetos fora de lugar e inseridos num espaço anacrônico causam no visitante uma estranheza em relação ao lugar. Há um simbolismo no conjunto, que leva a essa estranheza, mas que, ao mesmo tempo, possibilita a associação com as interferências do homem e suas múltiplas intervenções nos contextos naturais.
Brilhantes que nos remetem à classificação legendária e universal da abundância, do poder. Metáfora de possibilidades e poder. Um poder submetido à ignorância e ao descuido. Metal e água. Solúveis ou não? Água: pura ou poluída? Metal sobre água: o poder da escassez sobre a água, da abundância e do limite. E as bacias, ao mesmo tempo, simbolizam escassez. Há, simbolicamente, um jogo de poder e distância, fantasia e realidade que pode se transformar em melancolia.
Neste caso, a inacessibilidade das bacias , trazem uma mensagem que foge de sua usual função protetora, limitando-as espacial e praticamente. São sinônimos de alerta. Um chamado à reflexão. Objetos que, fora de seu contexto e com sua função transferida ao não-lugar, ganham uma nova função simbólica que, desta vez, pelo lugar e contexto em que foram inseridos, nos alertam sobre como nossos atos podem ainda evitar a catástrofe.
Ao mesmo tempo, aqui, a relação com a paisagem vai gerar a discussão em relação à “interferência” nas vivências, lembranças de cada um que visite o lugar com as referências pessoais, possibilitando a inserção de cada um, a partir destas vivências pessoais na abordagem e interpretação das propostas da artista.
Na instalação Fonte a fotografia é explorada em algumas de suas possibilidades: como a representação bidimensional e como a incorporação à tridimensionalidade no caso do uso do backlight. A representação de um bebedouro seco nos remete à sensação de ausência. A ausência que neutraliza sua função, que justifica seu uso.
Sem água, o bebedouro se torna inútil, desnecessário. Um objeto sem função e sentido.
No vídeo Environment I, quatro cenas giram, em sentido horário, sobre a imagem de uma massa incontrolável e incalculável de pessoas. A artista que, no processo inverso, tem seu cabelo - que estava molhado - seco, em sintonia com o degelo de um iceberg dos pólos, uma privada e uma banheira. Aqui, a realidade é representada como cheia de possíveis situações e o tempo das lembranças não é necessariamente o passado. Há uma representação do entorno na obra de Conte, assim como uma simbologia sistêmica nos trabalhos da artista, independentemente do suporte que ela utilize.
Nas fotografias EntrePlanos, da Serra da Cantareira, as imagens, de uma beleza singular e infinita, nos permitem visualizar a mais cruel ação do homem sobre a natureza, fruto do crescimento desmedido da metrópole de São Paulo. São frutos que, metaforicamente, crescem como crescem as árvores pelo sustento natural da terra e, sobretudo, em contato com a água. Neste caso, os frutos são de concreto e aço, são a poluição e os tons cinzas. Se a representação pictórica da artista contém uma verdade indiscutível, a realidade é uma agressão sem limites sobre a Mãe Terra. Os contornos da Serra diluem-se nos limites dos prédios e construções que se erguem como espirais de invasão, revelando uma relação de força e antagonismo visual e cênico.
Mas há esperança na representação, Conte captou em Planeta Terra o Sol nascente repetidamente em diferentes intervalos espaciais e de tempo. Uma outra vez, a aurora apresenta-se estática, em caixas de madeira, como relíquia.
No Brasil, diferentemente da grande maioria dos países latino-americanos, a arte de denúncia social é limitada a períodos curtos e esporádicos. Poucos artistas e curadores refletem ou discutem sobre o tema. Conte, não entanto, traz a tona a discussão sobre o tema do meio-ambiente com um viés social que transcende as fronteiras locais na discussão de um tema com conotações universais.
Em cada uma das obras de Conte, estão em evidência, de uma forma ou outra, a singularidade, autenticidade, unicidade e originalidade, estabelecendo, em cada projeto, uma conexão direta com o momento originário em que esse resultado converte-se em reflexo empírico e semiológico. Desta forma, o significado pretendido pela artista converte-se na condição repetitiva de um mesmo significado e, desta forma, em cada significado há implícita uma decisão prévia de convertê-lo em veículo de um signo.
A singularidade de cada peça está vinculada às imagens que sucessivamente estão representadas, assim como à forma em que estas imagens são registradas em nossa imaginação: não de forma estática, mas através de uma recomposição constante e interrupta. Esta singularidade baseia-se no reconhecimento do espectador no momento da percepção, tendo como referência a imagem um objeto vivo, ou diante da presença mesmo deste objeto.
A exposição, desta forma, mostra obras que, mesmo separadas por propostas, em conjunto criam uma corrente única e orgânica de discussão e percepção.
Andrés I. M. Hernández - Curador e critico de arte
São Paulo fevereiro 2009.