Colagem cotidiana e ecologia cultural na obra de Angella Conte
O arquivo fotográfico de Angella Conte é formado por imagens com vocação para se misturarem. Não no sentido de se confundirem na memória, mas no de se mesclarem mesmo; de possuírem pontos em comum fortes a ponto de as tirar da ordem cronológica, geográfica, de embaralhar o registro artístico e o turístico, o flagrado e o instruído, o sonho e o pesadelo.
O que une um conjunto delas é tão singular quanto o que o separa, para reiniciar e frear de novo o jogo de combinações que não cessa de ser reinventado. Um arupamento de fotos de becos, tirados mundo afora e com diferentes propósitos, já se formalizara como ampliação fotográfica única, que colava um beco no outro gerando uma estrutura urbana claustrofóbica e algo surrealista. (Importante notar, entretanto, que a “colagem digital” era propositalmente seca, para deixar aparente a operação.)
Pois este agrupamento – que poderia ter parecido finalizado aos mais incautos (isto é, finalizado em sua própria potência de seguir agregando becos do mundo infinitamente) – comparece agora como um dos elementos de base para uma nova colagem digital. No novo arranjo, a coleção de becos faz as vezes de céu para uma sobreposição insólita de paisagens. Em todas as colagens da série Cotidiano Inventado, testemunhamos uma convivência entre lugares diferentes e temporalidades distintas.
A luminosidade do pôr-do-sol parece incompatível com a luz suave que banha os jovens reunidos em um piquenique em outra paisagem, assim como o céu cinzento e poluído que cobre a metrópole não condiz com a temperatura forte que cobre a multidão que se acotovela – de costas para nós – para observar atentamente um fato que também não nos é dado a ver.
Por vezes, o contraste é contextual, como no espelho convexo pendurado em uma árvore que revela uma paisagem urbana no que seria o contraplano da fotografia em que o espelho foi inserido. Ou como no campo com rolos de feno que surge enclausurado em um edifício de alguns séculos atrás.
Natureza e cultura em estranhas conversações.
Em várias das imagens se repete uma figura feminina, que protagoniza ações enigmáticas. Ela cochila no que aparenta ser uma sala de estar montada a céu aberto. Ela caminha, vestida de dourado, carregando um volume desproporcional de balões brancos por paisagens desabitadas. Ela se posta vendada, e tendo as mãos presas às costas, no meio de uma estrada. Trata-se da própria artista, retratada originalmente durante performances que realizou entre 2007 e 2012 em espaços urbanos no Brasil e na Europa (Portugal e Irlanda). Misturados a outros tempos e contextos, estes retratos perdem a conotação inicial (de abordar o contraste entre público e privado ou
de alertar para o anestesiamento em relação à natureza ou às rotas pessoais em uma cidade, por exemplo) para transmitirem novos sentidos ou para
relevarem significados antes ocultos.
O mesmo se passa em todas as recombinações de imagens, que nada mais são do que obras anteriores da artista misturadas. Estamos, portanto, diante de um longo repertório ou até de um arquivo transformado, à maneira da “retrospectiva” de Maurizio Cattelan no museu Guggenheim de Nova York no ano passado – quando pendurou todas as obras que já produziu (as próprias ou reproduções em tamanho reduzido), criando uma obra inteiramente nova (ou um novo e audacioso formato de exposição retrospectiva).
O que está em jogo aqui? Primeiro, uma sabedoria que Conte e Cattelan compartilham: a consciência de que em arte contemporânea, como na natureza, nada se cria, tudo se transforma. Depois – e aqui cessam as semelhanças entre os dois artistas –, uma filosofia propriamente ecológica.
A lógica da colagem, que permeia todos os trabalhos de Angella Conte, faz com que haja uma continuidade “natural” entre os diferentes temas e materiais com que a artista opera. Porque tudo – fotografia, vídeo, texto, escultura, objetos encontrados, objetos mundanos e objetos nobres, a tradição da arte e o palco da natureza – é potencialmente combinável, recombinável e reaproveitável. Então ela dedica ao universo de obras que já realizou a mesma orientação que imprime ao conjunto de matérias-primas e
discursos que elege.
Tudo adensa o curso de sua ecologia cultural. E nada poderia ser mais contemporâneo. Como nos ensina a semioticista Lucia Santaella, vivemos o marco histórico do 4o
fotográfico – o das imagens artesanais –; o 2o fotográfico, ou seja, o das imagens técnicas que guardavam do real o rastro do visível que a câmera captura. Seguiu-se o 3o das imagens digitais. Hoje, o que impera – o 4o híbrida.
As obras da série Cotidiano Inventado misturam registros espaço-temporais, mesclam discursos artísticos e hibridizam as experiências artesanais (pré-fotográficas), fotográficas e manipuladas/construídas (pós-fotográficas) de Angella Conte, apresentando-nos uma realidade movediça e poética que pode ser entendida como a do cinema e da literatura fantásticos, do videogame ou do universo virtual. Mas que, mais precisamente, espelha a sensibilidade/experiência contemporânea de conjugar todos estes mundos paralelos num só, a que rotineiramente damos o nome de vida. paradigma da imagem. O 1o paradigma era pré- paradigma foi o propriamente paradigma, pós-fotográfico, paradigma – é a imagem
Juliana Monachesi
Maio/2013
Daily collage and cultural ecology at Angella Conte’s work
The photographic archive of Angella Conte is formed by images with vocation to mix up. Not only on the sense of confusing themselves on the memory, but blending between them; posses strong common points taking them of the chronological order, geographic, mix the artistic register and touristic, the caught and built, the dream and the nightmare.
What unite this set is as singular as what it takes them apart, to start and stop again the game of combination that doesn’t cease to be reinvented.
A group of alleys photos, taken abroad and with different purposes, had already been formed as an unique photo enlargement, that paste an alley in another forming an urban structure claustrophobic and something surrealist.(It’s important to note, however, that the “digital collage” was dry on purpose, to leave clear the operation.)
For this group – That could have seemed finalized the most unsuspecting (completed in its own power then adding back alleys of the world infinitely) - now appears as one of the building blocks for a new digital collage. At the new arrangement, the collection of alleys is sometimes heaven for unusual landscapes. In all collages of the series …., we have witnessed a coexistence between different places and different time frames.
The light of the sunset seems incompatible with the soft light that bathes the young people gathered at a picnic in another landscape, as well as the gray skies and polluted metropolis that covers does not match with the strong temperature covering the crowd that pushing through - their backs to us - to carefully observe a fact that neither is given us to see.
Sometimes the contrast is contextual, as in the convex mirror hanging in a tree reveals an urban landscape in what would be counter-plan of photography in which the mirror is inserted. Or how on the field with rolls of hay that comes locked up in a building a few centuries ago. Nature and culture in strange discussions.
A female figure is repeated in several images, who stars enigmatic actions. She dozes off in what appears to be a living room set up in open sky. She walks, dressed in gold carrying a disproportionate amount of white balloons for uninhabited landscapes. She sits blindfolded, having her hands tied behind her back, in the middle of a road. It is the artist herself, originally portrayed during performances held between 2007 and 2012 in urban areas in Brazil and Europe (Portugal and Ireland). Mixed with other times and
contexts, these portraits lose the initial connotation (to address the contrast between public and private or alert for anaestheticization regarding the nature or personal routes in a city, for example) to transmit new meanings or show previously hidden meanings.
The same applies for all recombination of images, which are nothing more than the artist's previous works mixed. We are therefore faced with a long repertory or even a transformed file, in the manner of "retrospective" from Maurizio Cattelan at the Guggenheim Museum in New York last year - when he hung all his already produced work (or the actual size reproductions reduced), creating an entirely new work (or brave new format of retrospective).
What is at stake here? First, a wisdom that Conte and Cattelan share: the awareness that in contemporary art, as in nature, nothing is created, everything is transformed. Then - and here comes the cessation of similarities between the two artists - a proper ecological philosophy. The logic of the collage, which permeates all Angella Conte´s work, means
that there is a natural continuity between different themes and materials that the artist operates. Because everything - photography, video, text, sculpture, found objects, mundane objects and noble objects, tradition of art and the stage of nature - is potentially combinatorial, combined again and reusable. Then she dedicated to the universe of works that she’s already carried out the same orientation that gives to the set of raw materials and speeches that elects.
It deepens the path of her cultural ecology. And nothing could be more contemporary. How teach us semiotics Lucia Santaella, we are living the historical paradigm of the fourth image. The first paradigm was prephotography - pictures of the craft -, the second was the proper photographic paradigm, so the images of the actual techniques that kept track of what the camera captures visible. Followed by the third paradigm, post-photographic digital images. Today, it prevails - 4th paradigm - is the hybrid image.
The works in the series Daily Invented mix timeline records , blend artistic speeches , hybridize craft experiences (pre-photographic), and manipulated photographic / constructed (post-photographic) Angella Conte, presenting us with a moving and poetic reality that can be understood as the movie and fantastic literature, videogame or virtual world.
But what, more precisely reflects the sensitivity / contemporary experience of combining all these parallel worlds into one, that routinely we call life.
Juliana Monachesi
May/2013